quarta-feira, 10 de novembro de 2004

Você está demitido!

Ontem, assisti ao “O Aprendiz”, reality show que estreou na semana passada na Record e está sendo exibido pela emissora às terças e quintas a partir das 22h. Comandado pelo empresário e publicitário Roberto Justus - aquele que encantou (pegou), entre outras, Adriane Galisteu e Eliana, ele é baseado em um dos programas de maior audiência nos EUA neste ano, o “The Apprentice”. Lá, o show é apresentado por um dos homens mais ricos da América, Donald Trump: o milionário com o pior penteado do planeta.

Um resumo básico: "O Aprendiz" reúne um grupo de 16 participantes, oito homens e oito mulheres, que competem por um cargo em uma das empresas do próprio apresentador. O vencedor terá um contrato de um ano, onde receberá um salário R$ 250 mil nesse período. No programa, eles participam de tarefas que envolvem vários aspectos do mundo empresarial, como: vendas, marketing, promoções, ações beneficentes, negócios imobiliários, finanças, publicidade e gerenciamento, além de administração de bens e realização de eventos. Mesmo com a presença aqui e acolá de alguns termos não muito conhecidos pela maioria dos telespectadores, como, por exemplo, briefing e market share, a dinâmica do programa é bem palatável.

- Somos tratados como cão sem dono, sabe?...Temida sala da diretoria

No entanto, o ponto alto se dá quando a equipe perdedora apresenta-se à sala da diretoria, onde Justus anuncia a demissão de um deles. Até onte, a equipe feminina perdeu duas vezes. Justus é implacável. Se eu não soubesse que, na vida real, as reações e acusações comuns a esse momento não são muito diferentes, ficaria constrangido. Mas fiquei. Claro que para cair no patético e cafona é daqui para ali. Mas, apesar de toda mise en sène necessária a um programa de televisão, não da para não comparar com as famigeradas dinâmicas de grupo aplicadas pelas empresas para seus candidatos, principalmente para uma seleção de trainee, ou qualquer seleção, na verdade.

Afinal, se você pensar que, no Brasil, conseguir um emprego “qualquer-coisa-pelo-amor-de-Deus” transformou-se no sonho de grande parte da população - em especial EsseEsseÁ, que tem a maior taxa de desemprego do país, de acordo com o DIEESE - você imaginará o que uma pessoa é capaz de fazer para “garantir” o seu lugar ao sol. A situação é tão complicada que, atualmente, conseguir uma vaga para estágio ou trainee está mais disputado do que passar no Vestibular.

“O aprendiz” dá gás novo ao já surrado formato dos reality shows da TV brasileira. Saem de cena os competidores com músculos – e curvas – demais. Desaparecem os participantes com cérebro – e roupas – de menos. Quem entra na disputa são jovens com formação superior (há um engenheiro, uma publicitária, um advogado...), educados, bem vestidos e que, aleluia, falam corretamente a língua portuguesa. Nada, portanto, de gritos como “U-hu!”, “Caraca!” ou “Fala sério!” no ouvido do espectador. “O aprendiz” aposta na inteligência dos participantes e não em sua burrice, como costuma acontecer nas atrações do gênero – como no caso de “Sem Saída”, da mesma Record. A sensação é de alívio”, diz Marcelo Camacho em artigo publicado no site No Mínimo.

"A vida é dura... mas o dinheiro compensa", pensa participante americano

O programa dá margem a várias análises. A mais evidente para mim é a questão da competição levada ao extremo. É o capitalismo em estado bruto, onde “não há espaço para fracos”. Ressalte-se que o “fraco” aqui está entre os incluídos. Aqueles que conseguem fazer MBA na FGV ou ESPM, viajam ao exterior, lêem as revistas de auto-ajuda da Abril, como Exame e Você S/A. Os excluídos – aqueles sem educação, sem acesso a informação ou internet, sem saneamento, ora bolas! - ou cerca de 100 milhões de brasileiros (ou mais), não contam.

Aliás, um detalhe ficou muito visível no episódio de ontem: a demissão não se dá pela falta de qualificação do profissional (os currículos são excelentes) mas, principalmente, pelo seu relacionamento interpessoal. É a questão: qualificação todo mundo tem (estou falando dos incluídos, heim?!), mas um detalhe fará a diferença. É a era das competências. Não adianta contratar o Super Homem, se você busca alguém para trabalhar com kriptonita. Alguns dizem que relacionamento interpessoal é a sua capacidade de formar “panelinhas”, hehe! Brincadeiras à parte, outro aspecto que me chamou a atenção foi a diversidade de candidatos. Quer dizer, a ausência dela, ao contrário da versão americana, onde se vê negros disputando o cargo. Enfim...

Mas, o mais engraçado é que a EssePê que aparece na abertura do programa assume a sua cara de metrópole e faz o Rrrrio parecer uma vila e EsseEsseÁ um baleneário. Quem quer fugir desse clima maquiavélico, é melhor nem assistir. Não vale a pena se estressar.

Bônus Track
Já que o texto fala em competição, capitalismo, relação interpessoal, aqui vão algumas técnicas de negociação que os compradores de uma rede multinacional de supermercados estabelecida aqui no Brasil ainda usam nos dias de hoje. Acreditem, é real. E,essas são as mais leves, heim!!

1) Considere o vendedor como nosso inimigo número 1.
2) Seja inteligente, finja-se de idiota.
3) Não tenha dó do vendedor, jogue o jogo dos maus.
4) Não hesite em usar argumentos, mesmo que sejam falsos.
5) Desestabilize o vendedor exigindo coisas impossíveis.

Bonus Track 2
(...) Eu queria ter na vida simplesmente
um lugar de mato verde pra plantar e pra colher
ter uma casinha branca de varanda
um quintal e uma janela só pra ver o sol nascer"

Casinha Branca, de Gilson e Joram.

Tá bom, tá bom... essa casinha tem que ser no centro de uma metrópole, com internet, e cinema, e teatro, e música, e pizza delivery. Quis fazer um contraponto a essa disputa desumana que é o capitalismo, mas acabo de me denunciar: eu não sei viver no mato.

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