segunda-feira, 22 de novembro de 2004

A carne mais barata do mercado

Ou: Se Roma Negra é aqui, o Haiti também é.

No último sábado, foi comemorado o Dia da Consciência Negra. Na verdade, um dia para reflexão, como toda data comemorativa deveria sugerir, uma oportunidade para pensar sobre a situação do homem de pele negra e da mulher de pele negra neste país: as diferenças salariais injustas, o tratamento desigual frente a Justiça e a polícia, a falta de acesso aos postos de maior responsabilidade no mercado de trabalho.

Acredito que não resta dúvida que o racismo está entre as mais graves chagas das sociedades contemporâneas e precisa ser combatido com vigor. E qualquer democracia, se quer ser realmente democracia, deve partir do princípio que todos os cidadãos são iguais, têm os mesmos direitos e deveres. Por acaso, o artigo 5º da Constituição Brasileira diz que todos são iguais perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”. No entanto, o dia-a-dia, miseravelmente real, mostra que há algo de podre no reino da Dinamarca.

Dia da Consciência Negra: Uma vez que a "boa" sociedade não enxerga, é necessário fazer-se visível

Nesse sentido, o IBGE vem mostrando há anos a mesma vergonhosa realidade de um país profundamente desigual. A mais assustadora é a desigualdade racial, mais até que a de gênero: entre os brasileiros que estão no grupo de 1% mais rico do país, 88% são brancos; entre os 10% mais pobres, 70% são pretos ou pardos. Ou seja: os dados do IBGE apontam que a pobreza não é democrática quando se analisa a cor daqueles por ela atingidos. Os negros, que, de acordo com os critérios do instituto, são a soma de pretos e pardos, representam 45% da população, mas são 64% dos pobres e 68% dos indigentes do país.

No debate que tem ocupado a mídia nos últimos anos — depois de mais de um século de silêncio cúmplice — os mesmos falsos argumentos reaparecem: de que não há racismo, mas apenas discriminação social; de que é difícil qualquer ação afirmativa porque seria discriminatória; que somos todos afro-descendentes, afinal todos temos, pelo menos, um ancestral negro; de que o Brasil é um dégradé de cores dificultando políticas focadas na questão racial. Mas a verdade é que qualquer pessoa que se disponha com sinceridade a estudar o que se passa no Brasil sem medo de encontrar a verdade, verá que estes argumentos são manobras escapistas.

Todos os brasileiros podem ter algum tanto de sangue negro, mas é sobre os pretos e pardos de pele que pesa o preconceito que torna mais difícil, ou impossibilita, sua ascensão na escala social. Na ótica das pequenas autoridades do cotidiano – porteiros, policiais e seguranças – não há motivo para dúvidas: sabe-se quem é branco e quem é negro.

EsseEsseÁ, também chamada de Roma Negra, é considerada a cidade com maior população de pele escura fora da África. Quem não conhece Salvador pela sua propagada cultura afro-descendente? Sua religião, sua música, sua culinária? Entretanto, pasmem!, é aqui onde se vê as mais espantosas diferenças entre brancos e negros no Brasil. Lembro-me com nitidez de um comentário de uma amiga minha cabo-verdeana, que estudou na Universidade Federal por meio de intercâmbio, a respeito de seu desconforto na cidade. Ela não conseguia admitir como as pessoas conseguiam conviver de forma tão passiva com algo tão escancarado. Alienação ou costume?

Por falar nisso, em 1998, foi defendida na USP pela antropóloga Elisete Zanlorenzi, a tese "O mito da preguiça baiana". De acordo com ela, a tão decantada “preguiça baiana" é, na verdade, faceta do racismo. A tese sustenta que o baiano é muitas vezes mais eficiente que o trabalhador das outras regiões do Brasil e contesta a visão de que o morador da Bahia vive em clima de "festa eterna". Pelo contrário, é justamente no período de festas que o baiano mais trabalha. O objetivo da tese foi descobrir como a imagem da preguiça baiana surgiu e se consolidou. Elisete concluiu, após quatro anos de pesquisas, que a imagem da preguiça derivou do discurso discriminatório contra os negros e mestiços, que são cerca de 79% da população da Bahia. Para saber mais, veja este artigo.

Carnaval: maior parte dos negros ou estão segurando ou estão fora das cordas

Pois bem. No dia da Consciência Negra, foi realizada mais uma Caminhada da Liberdade em EsseEsseÁ, indo da Liberdade ao Pelourinho. Para quem não sabe, na Liberdade é o bairro com a maior população negra do país, com 600 mil habitantes. Lá também está a sede do bloco Ilê Aiyê, primeiro bloco afro da Bahia. O Ilê é uma referência na preservação e valorização da cultura afro-descendente. Quando saiu pela primeira vez, em 1974, não faltou reprovações e ameaças, tanto de policiais como de parte da imprensa mais reacionária. De acordo com o site do bloco, o jornal A Tarde, o mesmo que publicou um Caderno Especial sobre África no sábado, 20, tinha como manchete em de fevereiro de 1975: "Bloco Racista, Nota Destoante". A matéria dizia o seguinte:

"Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: "Mundo Negro", "Black Power", "Negro para Você", etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de "Bloco do Racismo", proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. (...) Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças. Mas, isto no Brasil, eles não conseguem. E sempre que põem o rabo de fora denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito difícil que aconteça diferentemente com estes mocinhos do "Ilê Aiyê""

O Brasil viveu por muito tempo o mito da democracia racial. Ainda há gente que acredita nisso, o que é lamentável. Por isso, o ideal é que a sociedade tome consciência dos problemas. Mas, antes disso é preciso enxergar. E as pessoas, infelizmente, ainda não estão acostumadas a ver um palmo diante do nariz.

Bonus Track 1:
Recomendo, para leitura, os livros Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire. É um bom começo para entender a complexa dinâmica social brasileira.

Bonus Track 2:
A carne mais barata do mercado É a carne negra!
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado É a carne negra!

Que fez e faz a história pra caralho
Segurando esse país no braço (meu irmão)
O gado aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento Mas muito bem intencionado
E esse país vai deixando Todo mundo preto e o cabelo esticado
E mesmo assim Ainda guarda o direito

De algum antepassado da cor Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor Brigar, bravamente, por respeito
De algum antepassado da cor Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor Brigar
Carne negra!!!

A Carne, interpretada por Elza Soares, no CD do Cóccix até o Pescoço

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