quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Passageiros

Ou "Janelas da Alma", ou "Cadê?", ou "Até que um dia...", ou "O olhar", ou "Já era para acontecer", ou "Contato", ou "A viagem"... Enfim, você decide.

Sobe. Nos encontrávamos diariamente no ônibus 253. Pontualmente às 07h47. Olhávamos-nos, investigávamos mutuamente quem era aquela outra pessoa. Olhos aflitos, cheios de curiosidade, respiração ofegante, entrecortada. Nunca sentávamos juntos. Era como que uma espécie de acordo. Apesar disso e como se fosse combinado, ficávamos em lugares estratégicos do veículo para nos observarmos melhor. Cada mínimo gesto de um era percebido pelo outro. E ele significava muito, muito mesmo. Sobe.

Tudo de cada mínimo era motivo para olharmo-nos por uma fração de segundo, a medida de nossa relação. O segundo era por assim dizer o nosso mais longo contato. Nada nos importava. Nossa atenção só se desviava, por segundos, quando o grande mar cor de prata aparecia como um tapete. Os novos rostos, após rápida inspeção, eram devida e rapidamente ignorados. Estávamos como que Namorados, embora um não dissesse nada para o outro. Pra quê? Nossos olhos já revelavam nosso desejo. Desce.

O verbo até então não era necessário. Brigávamos algumas vezes, como todo casal, principalmente quando a atenção de um era um livro qualquer ou, então, um amigo que aparecia sem ser convidado. Naturalmente que eles tomavam a exclusividade exigida pelo olhar do outro. Eram intrusos, como cisco no olho. Nesses momentos, a comunicação era de alguma forma bloqueada, quebrada... uma traição! O desejo quer posse? Contudo, depois do ciúme por um olhar exclusivo ser dominado em segundos, nosso encontro se tornava muito mais forte, mais umbilical. Nossos sentidos se expandiam. Sobe.

Desejo. Conexão... Conquista

E a curiosidade aumentava. Brincávamos de tentar descobrir o que o outro lia, ouvia, para onde iria...tudo. Tudo era como que mais um bloco sendo colocado na construção de nossa vida em comum. E que passo importante se conhecer o outro! Sabíamos, depois de um tempo, o que cada um gostava, o estilo de se vestir, os acessórios, e éramos rigorosos. Também tomávamos cuidado com os olhos grandes, dispostos a acabar com a felicidade alheia. O problema era quando o ônibus enchia, ou tinha uma rotatividade grande de passageiros. Por causa disso, começamos a aprender truques cada vez mais sofisticados. Sobe.

Até que um dia um não veio. Desce.

Tudo mudou. Para o outro, foi o pior momento para o seu olhar, que ficou perdido, desorientado, sem rumo. Tentou entender os outros olhares, mas os outros não o interessavam. Olhou para o mar que tanto gostava, mas não concedeu nenhuma atenção à sua beleza. Só via o horizonte. Não, só via além do horizonte. Dizem que é bom ver além, mas não havia realmente nada. Essa experiência não era tão agradável quanto ouvira falar. E uma sucessão de imagens e perguntas passava confusamente pelos seus olhos e sua mente. “O que aconteceu?”. “Por quê?”. Desce.

No dia seguinte, não apareceu novamente. No terceiro, quarto... também não. Passou-se uma semana e nada. Era uma tragédia. Lembrou-se que a vida humana é trágica, que termina em dor e morte. Por acaso, alguém tinha dito que seus olhos tinham perdido o brilho. E cada dia a mais sem o outro, um bloco caía da construção. “Éramos Namorados”, dizia com seus olhos sem brilhos para outros olhos, indiferentes. Duas semanas... Sobe.

Tentava fazer com que suas lembranças dos últimos três meses lhe fizessem companhia. O primeiro olhar... ah, o primeiro olhar... Esse foi o mais longo. Uma eternidade. Parecia que tudo tinha parado naquele instante. Mas, não, ao contrário, de maneira que seus corações haviam acelerado e suas mãos suavam. E se perturbaram. O que está acontecendo? E imperceptivelmente sorriram, com um desses sorrisos que falam por si. Mas muito constrangidos. Sobe.

Depois, vieram os olhares ousados, de descobridores. Olhos cor-de-mel inspiradores, olhos negros tentadores. Desejo. Conexão. Conquista... Três semanas. Falta, perda. Até que, de repente, viu um dos amigos do outro. Mas seus olhares nunca se bateram. Menos um bloco. Mais um dia. Novos passageiros. Antigas caras. O trajeto passou, então, a ter importância. Muita, de modo que tentava em vão fixar cada ponto, cada lugar, as cores berrantes, os sons estridentes, as palavras mal escritas, mesmo que tudo fosse tão mal cuidado e feio! Não reconhecia nada. Seu mau humor era evidente, podia-se notar. Por isso, decidiu não olhar mais para ninguém. Não valeria a pena e nada substituiria o outro. Esse era o caminho mais sensato. Sobe.

Mas, sem se dar conta, o outro estava lá há, pelo menos, uma semana, atordoado, esperando um olhar, um segundo de olhar. E nada acontecia. Suas férias foram tão desejadas. No entanto, quando chegaram não as queria mais. Tinha marcado até viagem. Queria desistir, mas não podia. Sentiu culpa por não ter se despedido. Sentiu saudade. Sentiu muito durante os dias que passou distante. Queria voltar o mais rapidamente para se explicar. Tentou, inclusive, ficar em pé. Em vão. Mais uma vez e nada. “Desistiu de mim”, pensava. Não obtinha resposta e não reconhecia mais aquele olhar. Parecia triste, sem brilho. Um dia, sem querer mais esperar, sentou-se ao lado do outro e perguntou: - Posso sentar aqui? Desce.

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