terça-feira, 21 de setembro de 2004

Paraolímpicos

Ou “Que Deus nos dê o que somos capazes de suportar”

No dia 12 de julho de 2002, cinco pessoas foram atropeladas em um ponto de ônibus no bairro do Comércio, em EsseEsseÁ, por um Honda Civic conduzido por um rapaz de 27 anos que fazia pega no local. Um farmacêutico. Duas delas ficaram mutiladas. A estudante de pedagogia, Adriana, de 28 anos, que estava no ponto depois de participar do ensaio de sua colação de grau, teve que amputar as duas pernas em decorrência do acidente. Perdeu a festa de formatura. Sobreviveu. Deficiente física, hoje Adriana é professora. Passou no concurso Prefeitura e ensina crianças.

Na época, o acidente chocou a cidade. Houve manifestações de solidariedade e de protesto contra a violência e imprudência no trânsito. Não sei o que aconteceu com o farmacêutico. Provavelmente, não está preso. Afinal, ninguém fica preso no Brasil por atropelamento. É aquela velhíssima história: se você quiser matar alguém neste país, atropele. Se você for graduado e estiver dirigindo um Honda Civic, as chances de ser apanhado são menores ainda. Lamentável.

Com o episódio e com vários outros que se seguiram, fiquei e fico pensando como uma pessoa que tem a sua vida modificada de forma tão drástica consegue seguir adiante. Realmente, não tenho a resposta. Por isso, a frase no título, que tirei de algum lugar (Não me lembro de onde. Depois procuro saber) e anotei numa agenda. Enfim, a Adriana é um exemplo de alguém que sobrevive a si mesmo. Porque não deve ser fácil. No entanto, nada me chama mais atenção do que os atletas paraolímpicos que, apesar de... (e eu não sei se foi de nascença ou adquirido, não importa), são vencedores.

Com a participação de 143 países e cerca de 4 mil atletas, começou na sexta e prossegue até segunda-feira, 27, a Paraolimpíada de Atenas, a maior da história. O Brasil, que participa desde 1976 da competição, levou sua maior delegação: 98 atletas. São 19 modalidades disputas por atletas portadores de deficiências. O esporte é dividido tradicionalmente em seis classes: amputados, paralisados cerebrais, cegos, cadeirantes, deficientes mentais e os que não se classificam em nenhum delas, "les autres".

Em Sydney, o Brasil terminou a Paraolimpíada na 24ª colocação, com 22 medalhas (seis de ouro, dez de prata e seis de bronze). Ontem, terceiro dia de competição, o país conquistou quatro ouros no judô e no atletismo, além da prata na natação. Com a vitória nos 200m, a mineira Ádria dos Santos (foto ao lado, com seu guia Chocolate), deficiente visual, se tornou a maior medalhista paraolímpica brasileira, com 10 medalhas, sendo quatro ouros e seis pratas.

O pai de Kate
Bem, eu parto sempre do princípio de que todos nós temos algum tipo de deficiência. A física, obviamente, é a mais visível. Embora a sociedade tenha feito diversos avanços nos direitos dos deficientes, ainda há muito por fazer. Hoje, por exemplo, é comemorado o Dia Nacional de Luta da Pessoas com Deficiência. Em pensar que algumas sociedades matavam (e algumas ainda assassinam) crianças deficientes...

Como sabem, Kate é uma amiga minha hiper hypada que me apresentou ao pagodão da Marina da Penha, na Cidade Baixa (Sim, pagode. Mas não digam nada até ver o post de 16 de junho - No Rrrio, tocha olímpica. Em Essepê, parada gay. E daí? - e de 12 de julho - A curiosidade matou o gato). E é uma garota cheia de surpresas. Estávamos conversando a respeito das Paraolimpíadas quando fiquei sabendo que seu pai, de 54 anos, é deficiente visual. Há sete anos, “Seu” Adilson ficou cego, de repente, num ponto de ônibus. “A cegueira foi decorrência da diabetes”, disse Kate.

- Mas como? Você não me falou na semana passada que seu pai acusou um vendedor de estar roubando material da construção de sua casa?, perguntei.

- Você não sabe da missa a metade. Foi meu pai quem desenhou minha casa. Disse onde ficaria a sala, a cozinha, qual o tamanho do banheiro... tudo. É ele quem diz quantos blocos vão ser necessários para fazer a obra e a quantidade de cimento. E ai de quem disser alguma coisa.

- Mesmo?

- Oxê – disse Kate, revirando os olhos e respirando fundo, atestando a experiência da convivência - Ele sobe para a laje para fiscalizar o trabalho do pedreiro. Agora, me pergunte como que eu não sei.

Kate contou que, no mesmo período que Seu Adilson ficou cego, contraiu também doença renal. “Suas pernas ficaram inchadas. Quis se matar. Foi preciso minhas tias, minha avó, todo mundo conversar com ele. Encomendaram até uma missa”.

- Aquela em que o padre quase expulsava sua mãe do quarto porque ela tava tirando bobs do cabelo enquanto ele rezava a missa?

- Essa mesmo.


Além de se recusar a fazer sessões de hemodiálise, Seu Adilson fugia constantemente do hospital. Até que ficou mais quieto. “As pessoas achavam que nós não cuidávamos de meu pai porque ele chegava lá sozinho. Depois, descobrimos que não ele queria pegar ambulância porque, segundo dizia, ela dava muitas voltas”, revelou. “O que ajuda é que, como ele foi taxista, conhece a cidade de cabo a rabo. O problema é que quando sai com alguém, quer ensinar onde fica os lugares”.

Kate contou também que tem um primo de sete anos que não tem quem faça ele acreditar que Seu Adilson seja deficiente visual. “Ele brinca de esconde-esconde com meu pai e pede para dizer onde é que ele está. Pela voz, meu pai sabe onde ele está. Resultado: o menino diz que ele tá enganando todo mundo”.

PS. 1) Não vou falar da cobertura da mídia. 2) Recomendo o livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, um dos melhores livros que li.

Bonus Track:
“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apensar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente.”
Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres, de Clarice Lispector

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