sexta-feira, 18 de junho de 2004

O Mundo é um moinho

Assisti, ontem, ao filme “Cazuza - O tempo não pára” na Sala de Arte do Bahiano. Estava lotada. É estranho ver sala de cinema alternativo lotada, mas eu adoro. Bem, antes de mim, milhares e milhares de pessoas também já foram assistir ao tal “relato ficcional” da vida do cantor carioca. Só no primeiro fim de semana (ele estreou no dia 11), foram 290 mil. É, até o momento, a maior abertura nacional do ano e a terceira maior desde a “retomada” do cinema brasileiro, perdendo apenas para Carandiru e Os Normais. Por que eu disse isso? Por nada, mas esse número dá uma indicação de como será a aceitação “comercial” do longa-metragem.


Daniel Oliveira na fase leãozinho de Cazuza

A despeito da campanha enlouquecedora da Globo Filmes, que “orienta” as afiliadas da rede Globo a cobrirem favoravelmente qualquer lançamento seu por todo o país; das idas de Lucinha Araújo, mãe do próprio, a todos os programas bagaceiros da TV, e de meu preconceito em relação à Sandra Werneck (diretora de Amores Possíveis/Pequeno Dicionário Amoroso), fui ver o filme simplesmente porque sou (no presente) fã de Cazuza. E ele me interessa. E eu sou fã de poucos, muito poucos.

Baseado no livro "Cazuza - Só as Mães São Felizes", escrito por ninguém menos que Lucinha, o filme é careta, não chega nem perto do que Cazuza realmente foi e fez. Mas eu gostei. Sou da geração dos vinte e poucos e alguns anos. Quando o Agenor de Miranda Araújo Neto morreu, em 1989, aos 32 anos, eu era ainda um pré-adolescente. Mesmo. Agora, é só imaginar suas canções na minha cabeça.

Cazuza foi um cantor instigante, intenso, tinha uma atitude rebelde, exagerada. Foi também inconveniente e armava barracos mil na zona sul do Rio. Carioca bem nascido, pertenceu a geração desbunde dos anos 80, que eu considero extremamente over. Os anos 80 são over. Tudo over. “Ame-o ou deixe-o” é a frase que define os anos 80. Um “desbundado” de hoje não chega nem aos pés dos dos anos 80.

O autor de "Exagerado", "Bete Balanço", "Pro dia nascer feliz" e "Brasil" começou a carreira aos 21 anos quando criou o Barão Vermelho e compôs suas primeiras músicas com o Frejat. Entre 1981 e 1990 gravou três discos com a banda e cinco álbuns solo. Foram apenas nove anos de carreira. Tido como um dos principais letristas da história recente da música brasileira, Cazuza assinou músicas com compositores de diversos estilos como Gilberto Gil, Rita Lee, João Donato, Ângela Rorô, Bebel Gilberto (prestem atenção em Leandra Leal, que a interpreta no filme!) e Arnaldo Antunes.

Um ponto interessante de sua carreira - e foi o que realçou a minha identificação com ele – foi que Cazuza não queria apenas o rock. Essa insatisfação foi um dos motivos para que ele deixasse o Barão e seguisse carreira solo a partir de 85. Sem nunca esconder sua paixão pela MPB, o cantor tinha atração especial pelas canções tipo dor-de-cotovelo. Na verdade, o flerte foi com o rock e não com a MPB. Tanto é assim que a música que mais me chamou atenção no filme foi uma de Cartola, que Cazuza costumava cantar, chamada “O mundo é um moinho”:

Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Presta atenção, querida
Embora eu saiba que estás decidida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais quem tu és

Ouça-me bem amor
Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Presta atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés


(Por falar de dor-de-cotovelo, eu sou mais chegado às músicas desse tipo compostas por Cazuza do que, por exemplo, às de Renato Russo (morto em 96), outro ídolo dos anos 80, outro que morreu vitimado pela aids. O fundo de poço de Renato é bem mais profundo. Até hoje eu não consigo escutar muito Legião Urbana. Eu sou mais leve. Eu sou mais “Preciso dizer que te amo” do que “Vento no litoral”, se é que me entendem.hehe!)

Quando a gente conversa
Contando casos besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
E eu não sei que hora dizer
Me dá um medo (que medo...)
Eu preciso dizer que te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Eu preciso dizer que te amo, tanto

E até o tempo passa arrastado
Só para eu ficar ao teu lado
Você me chora dores de outro amor
Se abre, e acaba comigo
E nessa novela eu não quero
Ser teu amigo (que amigo!)
Que eu preciso dizer que te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Que eu preciso dizer que eu te amo, tanto...


Ousado, Cazuza foi ainda um dos primeiros artistas na adoção da sexualidade livre como discurso público. Em entrevista a Folha, Frejat disse que estranha o tratamento sexual dado no filme ao amigo. Segundo ele, há ainda uma dificuldade por parte de Lucinha Araújo em reconhecer que Cazuza era homossexual, não bissexual. “Nunca vi prática heterossexual nele. Teve, sim, mas quando não estava completamente convencido de ser gay, bem antes de me conhecer", afirma Frejat. Com relação ao longa, ele diz achar "Cazuza" bonito por não ser "filme para chorar" nem "novela das oito". Inclusive, o ator Daniel de Oliveira (impressionante a semelhança!) fez um Cazuza bem machudinho.


Cazuza fazendo pose

Sandra Werneck se defende com relação às críticas pelo fato de deixar fatos e pessoas importantes de fora do longa, dizendo também em entrevista na Folha, que se fosse para reproduzir com exatidão os fatos, faria um documentário, não uma ficção biográfica. "Claro que a gente inventou muita coisa, mas a gente chupou muito do livro da Lucinha. Há seqüências [no filme] absolutamente tiradas do livro dela, que estavam quase prontas cinematograficamente." Ou seja, filme para mãe ver. (Rola uma história entre os blogs cariocas que Lucinha foi vista em todas as sessões cariocas do filme no Rio).

Cazuza adimitiu que estava com AIDS em fevereiro de 1989, por meio de uma entrevista concedida a Zeca Camargo para a Folha de S. Paulo. A partir de então, a imprensa não lhe deu paz. Em 26 de abril de 1989, a Veja estampou em sua capa uma foto ressaltando a magreza quase esquelética do cantor, com a manchete "Uma vítima da Aids agoniza em praça pública". Em dois dias, 808.869 exemplares da revista se esgotaram. No último parágrafo da reportagem de capa com oito páginas, a Veja praticamente enterra o cantor: "Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no momento presente". Mais uma das verdades ditas por Veja que foram por água abaixo.

A reação foi imediata. Na mesma semana, circulou em vários jornais um abaixo-assinado que ostentava 510 nomes, alguns deles de intelectuais e artistas ilustres: "Porta-voz da Síndrome da Antiética Adquirida, Veja nos oferece um triste espetáculo de morbidez, vulgaridade e sensacionalismo sobre Cazuza". Fernanda Montenegro e Marília Pera, por exemplo, deixaram de dar entrevistas à revista. Os jornalistas responsáveis pela matéria receberam todo tipo de ameaças físicas e morais e tiveram de deixar o país. Assim como o episódio da Escola Base, de São Paulo, a reportagem da Veja sobre Cazuza é tema de discussão sobre ética jornalística de 10 entre 10 faculdades de comunicação.

Minha idéia inicial antes de fazer isso tudo, era colocar apenas frases de Cazuza que eu acho fantásticas, como a de Brasil (Grande pátria desimportante/Em nenhum instante eu vou te trair), que depois abriu a novala "Vale Tudo", de Gilbeto Braga, ou Cobaias de Deus (Me sinto uma cobaia, um rato enorme, nas mãos de Deus mulher/De um Deus de saia cagando e andando), mas mudei de idéia. Enfim...

"Tem gente que se irrita, porque eu canto que todo mundo vai pegar sua pasta e ir pro trabalho de terno, enquanto vou dormir depois de uma noite de trepadas incríveis. Mas o dia-a-dia não é poético, todo mundo dando duro e a cada minuto alguém sendo assaltado ou atropelado. Então, vamos transformar esse tédio todo numa coisa maior. Li uma vez que você vive não sei quantas mil horas e pode resumir tudo de bom em apenas cinco minutos. O resto é apenas o dia-a-dia. Um olhar, uma lágrima que cai, um abraço… Isso é muito pouco na vida. Então, isso vale mais que tudo para mim. Prefiro não acreditar no Day after, no fim do mundo, no apocalipse. Um dia, ainda vou andar na nave espacial Columbus. Bêbado, lógico, mas vou andar! (...) Minha vida é muito assim: sempre morrendo de rir, nunca com tédio. E quer saber de uma coisa? O que salva a gente é a futilidade." Cazuza

Fontes: Eu, site do Cazuza, Folha, Clickmusic, Veja.

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