segunda-feira, 4 de julho de 2005

La ley del deseo

Ou: Democracia nas relações afetivas

Sei que já passou, que todo mundo já falou, mas eu não. Vou requentar. Semana passada, a Espanha, quem diria? a Espanha!, se converteu no quarto país do mundo a aprovar a união civil de homossexuais, dois dias depois daquele país que fica "em cima" dos Estados Unidos... aquele superdensenvolvido, cheio de gelo... como é mesmo o nome? ah, Canadá!, ter feito o mesmo. Os outros dois países que já estão aceitando a união de pessoas do mesmo sexo são a Holanda (2000) e a Bélgica (2003). Em várias partes do mundo, a legalização está avançando.

Só que, por ser um país majoritariamente católico, ao contrário dos outros, a aprovação do projeto no país de Dalí, Picasso e Lorca (Uma coisa que eles não podem se queixar é de referências) gerou manifestações pra lá de passionais tanto das pessoas que são favoráveis a ele quanto de seus opositores, liderados pela Igreja Católica. A repercussão, nesse sentido, está sendo bem maior, ainda mais porque os latinos foram além: a lei é a primeira a reconhecer integralmente a igualdade entre casais homeossexuais e heterossexuais sem reservas: pode casar, pode adotar, tudo.

Parlamento espanhol

Só que nesse episódio, me chamou a atenção a defesa do projeto pelo primeiro ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, que não sabia até então quem era. Ele disse: "Uma sociedade decente é aquela que não humilha seus membros.(...)Uma das grandezas da democracia é a liberdade religiosa, a liberdade de opinião e a liberdade de levar adiante um projeto político com o voto dos cidadãos”. Caralho, parece óbvio, não? Para muita gente não, principalmente os religiosos, que teimam em se meter em assuntos de Estado.

Embora já tenha passado a época do III Concílio de Latrão, que tornou o homossexualismo crime, e da era vitoriana, que mandou Oscar Wilde para o cárcere, ainda hoje pessoas são mortas a pancadas simplesmente por terem um comportamento diverso do convencional. A sociedade inclusive dá um certo indulto, uma espécie de licença para matar, além da exclusão social. Pois bem. Zapatero disse na quinta que se o papa (Chico) Bento XVI fizer alguma declaração, ele estará preparado para respeitá-la. “Ele vai contar com todo o meu respeito”, disse, já que “a liberdade de opinião é uma das garantias da democracia”. Finalizou, explicando que a reforma do Código Civil espanhol “ahorra sufrimiento inútil de seres humanos”. Massa, ponto para o Zapatero.

Chico Bento XVI ainda não se manifestou, mas o jornal El país publicou uma matéria com cardeais indignados com o projeto, que consideram-no uma "aberração" e um escândalo mundial. Eles querem a cabeça de Zapatero, sua renúncia. O cineasta Pedro Almodóvar, o mais destacado diretor espanhol da atualidade, também falou: disse que as famílias do século 21 são diferentes e não têm de refletir o modelo tradicional católico. "Não gosto de casamento, não vou me casar. Mas é importante que isso seja chamado casamento para que as pessoas saibam que é a mesma coisa para todos", disse.

Protesto e comemoração na Espanha: "É uma desgraça", disseram os primeiros.

Tudo isso me lembrou um programa que assisti na TV Cultura chamado Café Filosófico onde a convidada, a escritora e filósofa Márcia Tiburi, essa mesma que está pagando de gatinha no "Saia Justa" da GNT, falou sobre o tema "Democratizar o amor e a amizade". Primeiro, Márcia fez um histórico tanto do amor quanto da amizade desde "O Banquete" de Platão até os dias de hoje. Quando ela chegou na democracia eu quase surtei. Afinal, já eram 12h30 da madrugada! Mas a conclusão foi interessante. Márcia disse que embora não seja perfeita (e não é!), a democracia no âmbito das relações afetivas pressupõe que todos devem ter acesso a tudo, sem exclusão.

Ao contrário da democracia antiga, a contemporânea inclui todo um rol de direitos humanos, bem variados. Embora a maioria decida por todos, os outros, ou a minoria, têm que ter seu espaço garantido. Se fulaninho quiser pagar um de eremita e quiser viver solitário vagando por aí sem se manifestar, a democracia tem que garantir o seu espaço. Da mesma forma, se beltrano quiser permanecer virgem, o problema é dele, ninguém tem nada a ver com sua vida nem condená-lo porque não está casado. Se Maria desejar ficar com Joaquina, idem. Eu sou heterossexual, eu sou bissexual, eu estou hipersexual, eu estou assexual. É uma escolha pessoal e não interessa mais a ninguém! Os outros, segundo Tiburi, deveriam falar: tal pessoa encontrou uma maneira de se sentir completa e feliz. Essa é a democracia afetiva. Afinal, na medida em que se é determinado um padrão de comportamento ou de felicidade, quem não conseguir se enquadrar ou quem não quiser, está condenado a infelicidade. Concordo.

No Brasil, existe um projeto de lei de união civil criado por Marta Suplicy rolando há mais de 10 anos no Congresso. Já foi 13 vezes para votação no plenário da Câmara dos Deputados e todas elas acabaram em adiamento da discussão e da votação. No entanto, o Judiciário brasileiro, principalmente os juízes de primeiro grau, já reconheceu casos de partilha de bens, guarda de menores (caso do filho da cantora Cássia Eller), direito previdenciário e pensão alimentícia. Parece pouco, mas não é. A questão da liberdade, igualdade e respeito à dignidade humana passam, necessariamente, pela inclusão na proteção jurídica. E é isso que está acontecendo.

Este é só um aspecto da vida social que deve ser observado e eu queria falar essa história de democracia nas relações afetivas há meses. Por isso que eu peguei o exemplo da Espanha. Quem quiser saber um pouco mais sobre democracia, acho interessante esse artigo do filósifo Renato Ribeiro. Enfim, é como diria Caetano, o Sócrates brasileiro (hehe): (Enquanto) "Todo mundo quer saber com quem você se deita. Nada pode prosperar".

Bonus Track:
Neste domingo, João Ximenes , do Globo, falou sobre a Parada Gay do Rio, questionando-se se aquilo era um carnaval ou não e se tinha um caráter político. Recomendo.

Nenhum comentário: