segunda-feira, 9 de abril de 2007

Olívia no País das maravilhas - Parte II

Ou: Olívia quer chorar, mas não consegue.

“Como assim não tem lugar?”, gritou Olívia indignada.
A atendente repetiu a frase pausadamente: “Senhora, não temos mais lugar no vôo deste horário para Salvador. O avião está lotado.”
“Mais eu comprei a passagem, ô garota”. Olívia pega o comprovante do número do vôo que imprimiu em casa e mostra para a atendente. “Filhinha, tá aqui. Você não sabe ler, não? Você acha que eu acordei neste horário miserável para não embarcar, hein? Eu comprei a passagem, logo, devo embarcar. Devo, não: eu vou embarcar! Tenho compromissos inadiáveis na Bahia, entendeu, i-na-di-á-veis!”
“Senhora, o vôo foi muito procurado pelas pessoas. Por isso, efetuamos o check-in para aquelas que se apresentaram primeiramente ao balcão”, disse mecanicamente a atendente.
“Mas que porra é essa! Você está me achando com cara de palhaça, garota?”, perdeu a paciência Olívia. Outros passageiros que estavam também com vôo para Salvador começaram a se indignar e a confusão começou.
“Senhores, infelizmente não posso fazer nada.”

- Onde está Olívia?

“Isso é uma vergonha”, disse uma senhora, aparentando uns 40 anos, toda maquiada (parecia que queria esconder a idade. Parecei, não: queria!) e com porte de grã-fina do Leblon (mas, como todos ali, comprou passagem de 50 reais). Ela carregava no sotaque carioca e abusava dos trejeitos de quem toma muita pinga. Estava meio alta. Ao estilo “rodar a baiana” ela, enquanto falava, sacudia o braço direito, apontando o dedo indicador para cima. O braço esquerdo estava na cintura, formando um bule. “Mas que bagunça é essa. Estou aqui nessa porqueira de fila há quarenta minutos e só agora vem dizer que o avião está cheio. Vocês acham que eu tenho cara de idiota, é? Eu vou chamar meu filho advogado!”. Pega o celular na bolsa.
Um homem começou a bater com a palma da mão no balcão. “Falta de respeito! Isso é uma falta de respeito”, gritou.
Os atendentes viraram estátua.
“Eu tenho uma reunião amanhã em Salvador”, continuou o homem. Estava exaltado, com absoluta certeza. Acreditem. “Quem vai pagar a diária que eu vou perder no hotel onde fiz a reserva, hein?”
“Vergonha, vergonha. Bando de vagabundos”, gritou alguém que eu não identifiquei, tamanha bagunça. Minutos antes, chegou um grupo com cerca de 30 adolescentes da CVC. Iriam para Porto Seguro. A cada palavra exaltada, eles interferiam com gritos, palmas, “uhus”, “aeeeeessss”, etc.
Estátua.

Ao ver sua mulher na confusão, Zeca correu para o balcão da companhia para ver o que estava acontecendo. “Isto aqui é o fim do mundo. Eu vou chamar o PROCON!”, praguejava Olívia, quando Zeca chegou e a puxou pelo braço. Tirou do bolo de gente.
“O que foi, Olívia?”, perguntou Zeca. “Por que tanta gritaria?”
“Esses filhos de uma puta sem dono não querem me deixar entrar no avião, Zeca!”, disse, abraçando-o. “Venderam mais passagens do que o número de assentos do avião. Quem chegou primeiro, embarcou. Um absurdo!” Olívia queria chorar, mas não consegue.

“E agora, o que eu vou fazer, Zeca?”, perguntou, ainda abraçando-o, desamparada.
“Vamos voltar pra casa”, disse, alisando o cabelo da mulher, torcendo para que ela desistisse de ir para a Bahia. Torcendo para que a confusão aumentasse e a impedisse de deixá-lo.
Olívia tirou a cabeça do ombro de Zeca, afastou um pouco o marido, olhou nos seus olhos e disse: “Jamais!”

De repente, um homem da companhia apareceu, ladeado por seguranças. “Senhores, senhores. Por favor, acalmem-se!”
“Acalmar é o caralho! Eu quero viajar”, gritou alguém. Os adolescentes vibraram.
“Por favor. Vamos providenciar outro vôo para acomodar os senhores. Pedimos a compreensão de todos para fazer uma fila e efetuar um novo check-in”, explicou o homem.
“E para quando é o vôo?”, perguntou a senhora maquiada do Leblon.
“O mais rápido possível”, disse o homem.
“Quando, filhinho?”, perguntou novamente com as mãos na cintura.
“O mais rápido possível, senhora. Agora, por favor: vamos fazer uma fila”, pronunciou o homem.
Pronto, foi o suficiente para uma nova confusão. Enquanto uns queriam resolver seu problema e suplicavam já impacientes “gente, vamos organizar uma fila!”, outros queriam reclamar os seus direitos. Gritavam: “Isso é um absurdo!”. Outro detalhe: quem chegou primeiro? quem ficaria na frente de quem? A confusão levou mais de uma hora. Por isso, Olívia pediu para Zeca ir para casa descansar. Ele não queria. Ela o convenceu, argumentando que tinha que trabalhar às 8 horas e já eram quase cinco da madrugada. Ele foi. “Qualquer coisa, me ligue, viu, querida?”, disse, despedindo-se.

Olívia efetuou o check-in, assim como os outros passageiros. Estava esgotada. Comprou um lanche e foi sentar-se. Os adolescentes da CVC, derrotados de tanta energia gasta, deitaram-se no chão mesmo, uns sobre os outros. Ao lado de Olívia, sentou-se a senhora maquiada do Leblon.
“Ai, minha filha, não tenho mais idade para isso, não”, comentou.
Olívia balançou a cabeça positivamente e continuou comendo.
“Dá saudade o tempo em que eu viajava pela Varig. Não existiam esses horários malucos, não é verdade? Mas, como tudo que é bom acaba neste país por nossa própria incompetência, não é mesmo?, fazer o quê, né? Nunca seremos primeiro mundo”, desabafava. “Ah, e por falar nisso, me chamo Marina”, disse, estendendo a mão para Olívia.

Marina pintada. “Caymmi novamente em sua vida”, pensou Olívia enquanto retribuía o aperto de mão da outra. “Muito prazer, meu nome é Olívia”.
“Você vai passear em Salvador?”, perguntou Marina. “Dizem que os dias estão bonitos. Um calor...”
“Não, vou para Maracangalha”, disse. Mas, pelo olhar espantado da outra, Olívia achou melhor continuar falando. Sempre achou que os desconhecidos são ótimos para compreender nossos problemas. “Não sei o porquê, mas acho que tenho que fazer algo por lá, uma espécie de missão. Como sou fã de Caymmi - sempre fui -, em um sonho recebi esse recado. Sabe, aquele tipo de coisa que você tem que resolver senão não tem sossego?”
“Sei bem, minha filha. Eu bem sei...”, disse Marina. “Eu mesma, por exemplo. Estou voltando para Salvador para encontrar meu grande amor e resolver uma pendência que já dura vinte anos. Triste de quem ama e não perdoa, minha filha. O tempo me ensinou isso do pior jeito. Essa é a verdade. Vou lá, pedir para que ele volte aos meus braços”
“Nossa, vinte anos...”, espantou-se Olívia. “Eu estou casada há três”.

- Zzzzzzzzzzzzzzzz!!!!

“Sei que vão zombar de mim, sei que vão falar de mim: ‘uma mulher correndo atrás de um homem?’. Mas não me importo... Vem cá: não estou incomodando com minha ladainha, estou?”
“Não, acho que teremos muito tempo aqui”, brincou Olívia.
“Tive um filho com um baiano, minha filha. Aliás, cá pra nós, parece que todo mundo dá pra baiano e tem um filho. Até a Cássia Eller, que Deus a tenha. Ai, ai...”, suspirou. Olívia deu risada. “Me pegou de jeito, o nego. Depois, me disse que queria aproveitar a vida, que não queria se prender... aquelas coisas de homem cafajeste. Veio com a conversinha de que eu era a federal, que não me largava por nenhuma. Mas o vagabundo não podia ver um rabo de saia. Não agüentei e falei: ‘Saia, desapareça da minha vida!’. Ele até que tentou voltar, chorou, jurou. Mas, quando a gente é jovem, o orgulho se impõe e as palavras, muitas vezes, não provêm do coração, não é verdade?”, perguntou Marina.
“Hum rum”, concordou Olívia.
“Quando foi esse ano me ligou, dizendo que não me esqueceu. Nunca. Bem... já se passaram vinte anos sem eu ver seu rosto, sem olhar seus olhos, sem beijar os seus lábios. Você não sabe como foi grande a pena que sentiu a minha alma ao recordar que ele foi meu grande amor, Olívia”, disse Marina “Recordo que nos encontramos junto a uma fonte lá na Lagoa do Abaeté, conhece?. E alegre foi aquela tarde para nós dois. Recordo quando a noite abriu seu manto e o canto daquela fonte nos envolveu. O sono fechou meus olhos, me adormecendo. Senti sua boca linda a murmurar: ‘Abraça-me, por favor, minha vida’. E o resto do romance deu no que deu*.”

“Que lindo, Marina. Somente o tempo pode revelar o lado oculto das paixões”, disse Olívia, não acreditando muito nas palavras que acabou de proferir.

SENHORES PASSAGEIROS DO VÔO 2684 COM DESTINO A SALVADOR, DIRIJAM-SE AO PORTÃO 06.

“Ai, Jesus, é o nosso vôo. Qual é o seu assento?”, perguntou Marina.
“05 F. E o seu?”, perguntou Olívia
“Ohhhhhh, vamos nos separar, minha filha. O meu é 21 C. Mas, vamos”, disse Marina. Enquanto se encaminhavam para o embarque, Marina falou. “Não podemos perder o contato. Quero saber como será você toda bonita lá em Maracangalha”, riu.
“Eu também, Marina. E eu quero saber como será esse reencontro, hein?”, sorriu Marina.

No avião, já acomodada (ela correu para não ser barrada novamente), Olívia percebeu que algo estava errado. Teve a impressão que tinha gente demais na aeronave. Mas não era impressão: realmente tinha. Não é que a companhia enfiou 30 pessoas a mais no vôo 2684? No entanto, só perceberam o vacilo na hora da decolagem. Os coitados dos comissários tiveram que rebolar em função do apuro. Um corre-corre para lá, conversa com o comandante para cá. Não podiam decolar com passageiros a mais. O que fazer? Com a confusão já instalada – afinal, algumas poltronas tinham dois, três donos e a merda já estava feita – ele receberam a instrução de convencer pelo menos duas dúzias de voluntários a abandonar o avião... nem que fosse à força (de expressão, lógico).

Iniciou-se, então, uma espécie de leilão às avessas. Para que alguém resolvesse deixar a aeronave, por livre e espontânea pressão, os comissários anunciaram que ofereceriam R$ 200,00 para quem voltasse ao aeroporto.
“Em dinheiro?”, perguntou um passageiro.
“Não, senhor. Em crédito junto à companhia”
“Nem fudendo”, disse um passageiro.
“Não quero nem saber. Eu não vou sair daqui”, disse uma mulher.

Confusão. Uma criança de colo começou a chorar. E outras duas foram contaminadas. Abriram o berreiro.Todos falavam ao mesmo tempo. Apesar disso, a voz de Marina podia ser ouvida por toda a aeronave. “Isso é um desrespeito. Bando de irresponsáveis”. Ficaram neste sai não sai por pelo menos duas horas. Alguém chamou a comissária de puta. Ela saiu chorando, coitada. Alguém passou mal. Teve que ser atendido. Por fim, a companhia, por meio do comandante, anunciou que distribuiria viagens de ida e volta para qualquer lugar do país!
“Qualquer lugar”, perguntou um.
“Qualquer lugar, senhor”, disse o comandante.
Desespero total, geral e irrestrito. Muitas piadinhas. Muitas palavras de protesto. Quem achou vantajosa a oferta disse que só sairia de lá com um documento assinado. O documento chegou. O povo saiu. Às dez horas da manhã o avião, enfim, decolava para Salvador.

Parte III: Oliva passa uma tarde em Itapuã

* Fala inspirada na música Dez Anos, de Rafael Hernandez e Lourival Faissal, interpretada por Gal Costa em Gal Tropical.

Copyright: Danielicius. Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

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